sábado, 18 de fevereiro de 2012

O Inferno de Disney

O Inferno de Disney

Fernanda Torres*

A Disney é um conceito apavorante de infância organizado em um sistema angustiante de filas

Por doze anos recusei levar meu filho à Disney. Uma convicção estética inarredável orientava a minha negação. Nessas férias, porém, uma viagem ao México com escala em Miami amoleceu meu coração de mãe.

No dia 24 de janeiro do fatídico ano de 2012, abandonei os maias e a esplendorosa península do Yucatán para entrar em um avião rumo à Orlando. A temporada de cinco dias na Flórida foi comparável aos círculos de sofrimento de "A Divina Comédia", de Dante.

Como Deus ora pelos inocentes, meu rebento menor, de três, caiu com 39 graus de febre no aeroporto de Cancún. A milagrosa virose o deixou de molho nas primeiras 72 horas de aflição na América, enquanto eu e o maior adentrávamos as profundezas da terra onde os sonhos se tornam realidade.

O Limbo, primeiro círculo de penitência, se apresentou na forma de montanhas-russas colossais que comprimem os sentidos a forças G inimagináveis. Deixei meus neurônios serem prensados contra a parede do crânio em loopings cadenciados, até ser cuspida tal e qual um zumbi agastado, tomado por abobamento crônico.

As máquinas medievais de martírio causam náusea, vômito e enxaqueca.

Para os que preferem sofrer ao rés do chão, simuladores provocam a mesma sensação de abismo sem saírem do lugar em que estão.

Na sétima hora do dia, enquanto era sugada, no lugar da chupeta, por uma Maggie Simpson descomunal, eu já não falava e nem me mexia. Caí dura no resort de golfe, "wonder land" da terceira idade muito frequente na região.

A Flórida é o último refúgio dos que viveram até a aposentadoria.

Abri o olho e reneguei assistir a tormenta das baleias cativas nos tanques do Sea World. Atrás de motivos para ser castigada, fui arrastada às compras por um furacão chamado luxúria.

Usufruímos o céu nublado da Universal da tarde seguinte. O ar de quermesse do parque vazio, o clima ameno e o Harry Potter nos fizeram crer na alegria infantil dos americanos. Driblamos bem a comida intragável, servida em porções individuais que alimentariam tribos inteiras. O jejum é dádiva quando se encara as aves inchadas a hormônio e o teor transgênico das lanchonetes. Orlando é a cidade campeã da obesidade mórbida; o Lago de Lama dos que sucumbiram à gula.

A última alvorada foi dedicada à Disney. O sol brilhou no sábado de inverno, atraindo a multidão bíblica que lotou os milhões de metros quadrados de hotéis, zoológicos e parques temáticos; interligados por rodovias, hidrovias e ferrovias futuristas.

A Disney é um conceito apavorante de infância organizado em um sistema angustiante de filas. É o ante-inferno dos indecisos que aguardam em caracóis indianos uma satisfação que nunca chega.
 

Você anseia para ter o direito de aguardar em pé, agarrada à democrática senha que só amplia a espera. A jornada se esvai em uma azucrinante administração de tickets. A condenação à eterna expectativa seria até suportável, não fosse o suplício sonoro.

Como vespas a picar os tímpanos, a voz aguda das musiquinhas enjoadas, os "cling", "cleng", "glom" das engenhocas de ferro e a proliferação de musicais da Broadway, encabeçados pelo grande show do castelo da Cinderela, são de perder a razão. E mesmo durante o safari, única esperança de silêncio ecológico, o timbre de buzina da guia aspirante à atriz vinha pinçar os nervos.

A comparação entre a delicadeza do Caribe mexicano e a artificialidade embalada em plástico de Orlando foi um choque e tanto.

Antes de partir, visitei o paraíso. Um pântano na zona rural povoado por crocodilos, peixes e pássaros semelhante ao gigantesco charco que Walt Disney adquiriu há décadas atrás.


Em paz, no meio da lagoa virgem, me perguntei o porquê da zona urbana daquele lugar manifestar um prazer masoquista tão arraigado.

Talvez seja culpa pelo excesso de ofertas nos supermercados, pela invenção do papel higiênico felpudo, do "super size" tudo, dos veículos alcoólatras e das cidades sem pedestres. A insustentável fartura social se penitencia tomando sustos em trem fantasmas mirabolantes.

Não é diversão, é dívida cristã. A Disney nasceu na Idade Média.


Fernanda Torres

Extraído de Conteúdo Livre
17/02/2012, Fernanda Torres, Folha de São Paulo

Quase música

Quase música

Nelson Motta
- O Estado de S.Paulo / 17 de fevereiro de 2012 | 3h 04

Steve Jobs criou o iPod e revolucionou nossos hábitos de ouvir música, mas em casa só ouvia discos de vinil, contou seu amigo Neil Young, lenda viva do rock. Eles não se contentavam só com música e letra, canto e instrumentos - queriam que tudo isso soasse nos ouvidos com a potência, os timbres e a integridade da sua massa sonora original.

Como Tim Maia, queriam mais grave! Mais agudo! Mais eco! Mais retorno! Mais tudo! Porque nos fabulosos iPods, iPhones e iPads de Jobs o som que se ouve está comprimido em MP3 com apenas cerca de 10% dos sons que foram gravados. Para ouvi-lo mais próximo da gravação original, só em formatos como o wav, que contém muito mais dados, em arquivos muito mais pesados. Ou em vinil.

Mais do que uma discussão idiótica de audiófilos, de loucos por som, é um debate sobre pirataria, troca de arquivos, livre circulação de músicas na internet. Como a grande maioria dos consumidores de música se contenta em ouvir uma versão "popular" em MP3, isto também sugere novas ideias sobre o assunto. Neil Young (des)considera esses MP3 vagabundos que rolam na rede e nas bancas piratas como um novo rádio da era digital, uma difusão incontrolável, quase música; quem gosta de música de verdade compra um CD de boa qualidade sonora ou paga um download pesado de alta definição. Ou um vinil.

Mas como nada se compara ao impacto e sensação de ver e ouvir música ao vivo, de perto, em ambientes com boa acústica, a consequência direta da difusão maciça de (quase) música digital é uma espetacular valorização dos shows ao vivo, por ser uma experiência sensorial única e irrepetível, como o teatro.

No tempo do cassete, copiar músicas para um amigo era visto pelas gravadoras como divulgação de seus discos, por que agora fazê-lo por e-mail, ou num site de trocas, seria um crime? A irracionalidade e a ganância são atropeladas pela realidade tecnológica, o caminho sem volta faz uma curva ascendente. Nos Estados Unidos, pela primeira vez o volume de downloads pagos superou as perdas com a comercialização de CDs, o futuro finalmente chegou para a nova indústria da música gravada.

Extraído de Estadão

Para mais: Dicionariompb
Site do Nelson Motta - Sintonia Fina